sexta-feira, março 30, 2012

Malheur - de Roberto Lessa




Ó meu castelo! O meu tenebroso castelo
É tenebroso mas não deixa de ser belo!
Sou dono e guardião
De um castelo feudal chamado coração.
Entrai! Entrai! Senhoras vinde visitá-lo!
Dai-me os prazeres masoquistas de mostrá-lo.
Abri caminhos, urubus de asas aflitas!
Negros morcegos, arredai! Temos visitas.
"- Bom senhor, essês aí quem são, usando farda?"
Ó são meus urubus, meus velhos cães de guarda;
Fora Plutão! Passa Botelho! Sai Lutero!
Que estais fazendo aqui? Já disse que não quero
Essas tripas de criança emporcalhando a casa.
Meu Deus do céu! Esta sujeira é o que me arrasa!
A corvalhada sai por aí rondando os poços
E me deixa depois a sala cheia de ossos!
É sempre a mesma coisa! Êles sabem que enfim
Acabo lhes perdoando em nome de Caim...
Podeis entrar agora. A calma é impressionante.
Há mais de uma semana o fantasma do Dante
Não aparece por aqui, chorando e uivando...
Só o lobisomem tem surgido a quando em quando,
Mas hoje em dia êsse coitado anda tão triste!
É como Deus: ninguém mais sabe que êle existe.
Fracassou... E nós dois, ao luar, de braços dados,
Somos um belo par de monstros fracassados.
O mundo é mesmo assim... Neste século ingrato
O próprio Satanás caiu no anonimato!
Que importa? Vêde, êste é o salão de baile. Avante.
Porém cuidado com o esqueleto balouçante
Que ali dependurei para servir de enfeite;
São ossos especiais, mais brancos do que leite.
Êste é o escritório... aquela é a sala de jantar,
Com os candelabros. Nunca os ponho a iluminar,
Deixo-os dormindo, a descansar. Fizeram juz.
Além do mais amo a penumbra e odeio a luz.
E eis minha biblioteca... Ó Belzebu, que poeira!
Por Judas, onde foi parar a feiticeira?
Que coisa! E pago-lhe um cadáver semanal
Só por um servicinho à tôa... não faz mal...
"- Ó bom senhor, e aquelas portas, lá no fundo?"
Atrás de cada porta há o começo de um mundo!
Uns velhos mundos já perdidos na distância...
Vós sabeis... vós sabeis... recordações de infância...
Mas deixa-me espantar primeiro as ratazanas...
Quantas teias de aranha... até parecem lianas...
Truz... truz... E são milhões de ratos e de bichos...
Há duas décadas não entro nestes lixos...
É quase um pantanal... como subiu o nível!
Se hoje um cientista entrasse aqui é bem possível
Que descobrisse, em meio a "Eurekas" de alegria,
Bichos estranhos aos anais da Biologia!
Podem estar aqui, por esta selva brava,
As esmeraldas que Paes Leme procurava...
Craz... Craz... o meu falcão... êstes cipós... que rombo!
Se eu ao menos tivesse os mapas de Colombo...
Ouço tambores... certamente são selvagens
Que estão em guerra... Ei-los passando entre as folhagens!
Queira Deus que nenhum selvícola me escute...
Há um fóssil! Que é isto? Um osso... a ossada de um mamute!
O inferno verde não será como estas zonas...
Craz... Craz... Caluda! O galopar das amazonas!
Sou capaz de morrer de febre neste mato...
Mais longe... mais além... Valei-me, Borba Gato!
Meu Deus! Meu Deus! Enfim! No alto daquele monte
Uma constelação fulgura no horizonte!
Jesus! Outra e mais outra! Ó Cristo! O céu é azul!
Graças! Graças! Salvei-me: o Cruzeiro do Sul!

Senhoras, vinde, vinde! A terra prometida!
Encontrei finalmente os primórdios da vida!
Neste ponto iniciei a estrada da existência,
Vim depois por aqui... mas clemência, clemência!
Não posso suportar de novo tais horrores;
Ide sozinhas que eu espero... Ó minhas dores!
Ah! No comêço é tudo um puro sol de maio.
Depois... levai os sais para evitar desmaio.
Adeus! Como elas vão alegres, corajosas!
Parecem cá de longe uma porção de rosas.
Sumiram-se porém na curva das colinas.
Adeus! Adeus! Ó minhas bravas peregrinas!
Na volta contareis tudo aquilo que vistes,
Se puderes falar sôbre coisas tão tristes.

Deixem-me ver... há quanto tempo elas partiram?
Faz pouco tempo, um quarto de hora... ainda respiram.
Mas daqui a pouco! Deixem-me ver... uma hora... ainda
Estão na minha infância. A infância é sempre linda.
E depois tantos ais, depois tantas feridas
Que era melhor que elas levassem salva-vidas:
Quem não souber nadar, em meio a males tantos,
Pode até se afogar num vagalhão de prantos!
Agora aposto que já estão na adolescência
Vendo, a tremer, as minhas crises de consciência.
Uns passos mais adiante e chegam nesse dia
Em que eu, com febre, num ataque de fobia,
Roubei a enxada do coveiro e fui cavar
A minha cova e lá deitando-me, ao luar,
Joguei terra por cima. Ó prazer! Ó delícia!
Os vizinhos, porém, chamaram a Polícia...
E enquanto os guardas me salvavam, tão aflitos,
Eu lá de baixo murmurava-lhes: "Malditos!"
Mas, em comparação, minha paisagem de alma
Por êsse tempo ainda era doce, ainda era calma.
Ah! Já me devem estar vendo quando moço.
O panorama é o pantanal do Mato Grosso.
É necessário aqui saber certas manobras
Para escapar ileso à multidão de cobras.

Talvez tenhais achado aí, onde passastes,
algumas folhas arrancadas do Eclesiastes.
Deveis achar da mesma forma, pelo chão,
Um pouco mais adiante, o livro do Alemão;
Ó quantas vêzes eu, em lágrimas desfeito,
Passava as noites apertando-o contra o peito!
E Chamfort, Hartmman, e sei lá quem mais, meu Deus!
Um batalhão de pessimistas e de ateus.
Além começa o caos, a confusão suprema:
O dia em que escrivia o meu primeiro poema!
Vêde em seguida ali, naquela banda escura.
Reconheceis? São instrumentos de tortura;
Rodas, açoites, alicates e tenazes,
O fogo e o gêlo - suportei tôdas as fases.
Mais para lá, vêde... há uma cruz na encruzilhada.
Rezai, rezai! É a minha noiva amortalhada.
Levou-a a Morte! E era tão boa, era tão linda!
Eu a adorava como a um Deus. Lembro-me ainda.
Tinha um emprêgo aquêle tempo e, sendo nôvo,
Eu fui pedi-la ao pai, que se chamava O POVO.
O Povo deu-me a mão da filha e (ó desgraçado!)
Ela morreu-me em plena alcova de noivado!
Morreu-me! E tenho-a inda bem viva na memória;
Era boa, era linda e se chamava A Glória.
E então, testemunhai vós mesmas a paisagem;
Um Saara colossal... O tédio, o ópio, a vadiagem.
Só aqui e ali, quebrando o enfado do cenário,
Jaz o esqueleto de algum velho dromedário.
O deserto não tem tamanho, a geometria
Não pôde calcular sua periferia.
Enfim êle é tão grande e tal a área que encerra,
Que nem coube no plano esférico da Terra!
Mas depois a mudança é tão brusca de sorte
Que passareis de lá, do Saara, ao polo norte.
Agazalhai-vos bem. Essas geleiras grandes
Já causaram inveja ao Himalaia e aos Andes.
E depois... e depois... ó perdoai-me, leitores!
Se eu descrevesse tais angústias e tais dôres,
De tal forma mostrara o fatalismo humano
Que irritaria mesmo o próprio Vaticano!
Leitores, o que foi meu último sossôbro,
Lêde o Inferno de dante e o calculai: é o dôbro.

Mas que barulho é aquêle? As senhoras voltando
Da romaria... Posso ouvi-las conversando:
" - ... como pôde caber na alma? Tanta amargura
Não tem remédio." " - Mas talvez na sepultura..."
"- E que coisa medonha aquela selva preta!"
"- Selva? É mais do que selva! É o lixo do planêta."
"- Mas Deus conseguiria aliviar tanta pena!
"Os próprios diabos fugirão, em debandada,
"Quando o virem, acaso, à noite, numa estrada!"
"- Se déssemos ao pobre um veneno, um punhal,
"Remediaria, quem sabe, o gigantesco mal..."
"- A mãe que o amamentou teria fel no peito?"
"- Nem uma bruxa dormiria no seu leito..."
"- Não lhe estendam a mão na hora da despedida,
"Pode contaminar." "- Virgem Santa, que vida!"
"- Mas ei-lo, o mísero, esperando ali, sentado.
"Olá, senhor. Vamos saindo dêste lado,
"Não se incomode, adeus!" "- Adeus! Para seu bem,
"Que Deus o faça morrer logo..."
                                                  Amém! Amém!

E adeus, senhoras. Voltareis um dia, espero...
Dá-lhes passagem Belzebu, vem cá Lutero...

Março, 1965

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