segunda-feira, maio 29, 2023

Labaredas (de amor, desejo e escárnio) - Volume Completo - Poemas de Adriano Pacianotto

 

LABAREDAS (DE AMOR, DESEJO E ESCÁRNIO)

POEMAS
ADRIANO PACIANOTTO


CAPA & ILUSTRAÇÕES
RAFAEL PIRES


2022






Apresentação

Caro leitor, de antemão alerto que estas páginas podem ser desconfortáveis e terrivelmente verdadeiras. Não caminhe desavisado por estes versos incendiários, pois há fantasmas espreitando o fogo e eu não posso controla-los. Não pise em ossos, não revire escombros e não tente acordar os mortos. Apenas entre com cuidado, pois esta é a lira dos errantes, um submundo venenoso e impregnado de amor, desejo e escárnio. Perdoe-me se eu perturbar sua alma, se incomodar seus sonhos ou colocar seus demônios pra fora. Não há garantia de retorno.

Boa leitura.





Temo acordar demônios
Por isso trago comigo
Minhas doses de veneno






AMOR



MARTINELLI

Pularia do prédio alto
Do balaústre sujo e calmo
Diria adeus ao nada
Daria mais um passo




NO CENTRO DA CIDADE CINZA

É sexta-feira
No centro da cidade cinza
E as mudanças de caminho
Desviam-me do teu brilho
E de tudo o que conheço

No rosto o frio e o vento
Entre os prédios, pequenino
Vejo o quanto tudo é imenso
E o quão distante é o recomeço
Que parece-me impossível

Vejo a vida envelhecendo
E o sol não serve abrigo
Entre as torres de cimento
Onde a chuva doutros tempos
Vez ou outra vem comigo




FINADOS

Passei para entregar-te rosas
Compartilhar nosso silêncio
Teus olhos eram tão perfeitos
Que jamais eu me esqueço

Vim trazer-te minhas lágrimas
A saudade que guardo no peito
Nunca mais me dirás nada 
Nunca mais carinho ou beijos

Deixo flores sobre a tua cova
Com o cheiro dos que já morreram
Com a dor que desabrocha

Aguardo a tua voz tranquila
Que nunca mais trará respostas
Sufoco o pranto e vou-me embora




AFTER HOUR, RESSACA & GAROA

É o dia seguinte
After hour
O peso do arrependimento
Num dia nublado

Procuraste, mas eu não estava
Quantos mais me procuraram?

É o fim de outra jornada
Já não suporto
Quantos mais morrerão a meu lado?

Quantos olhos se encherão de lágrimas?
Terei dias mais calmos?
Ou simplesmente não terei mais nada?






A saudade que tenho de ti
Aos poucos vai se transformando
Na saudade que tenho de mim





NO SOLAR DOS TRISTES DIAS

Ergueu-se calmamente em mim
O solar dos tristes dias
Que sombriamente esconde
Corredores habitados por mofo
E saudades de tempos distantes

O solar aonde a alma vaga
Entre vasos de orquídeas mortas
E retratos dos que já se foram
Entre sombras e arquitetura gótica
Cupins que lhe devoram as cores

Pelas janelas uma brisa sopra
Poeira flutuando em salas
De semblante sério e fúnebre
Sugerindo mil fantasmas
Com seu ar de vela e flores

Caixões navegam em balaústres
Como naus em calmaria
Com seus vultos e carrancas
Como ventos d’algum dia
Que se apaga da lembrança

E ao ouvir os passarinhos
Corro até a varanda
E me sento na escadaria
Assistindo o derramar das folhas
E o enferrujar de meus amores




NOITE SEM ESTRELAS

Talvez agora nada esteja claro
Talvez o tempo atenue a dor
E sufoque a solidão imensa
Que se agiganta, só aumenta
Pela falta de um amor intenso
Capaz de ressuscitar meus sonhos
E engrandecer os meus anseios

Devo beber em outros lábios
Inquietude e sentimento?
Ah! Dúvidas que tenho...
Onde foi que errei tanto
Trilhando versos tão confusos
De tormento e desespero?

Meus amores desgraçados
Minhas dores congeladas
Meus desejos enterrados
No coração que já não chora
De tão vazio e tão cansado
Pelos prantos que não deram em nada

Obrigado por lembrar de mim
Em dias de aniversário
Segue a vida, vem a morte...
Cada vez mais longe dos teus olhos
Agradeço por chorar saudades
Ao lembrar dos nossos mortos

Quem me dera caber no peito 
Todos os amores tortos
Quem me dera não chorassem tanto
Por eu não ter nunca dividido um sonho
Por eu não ser capaz de acreditar em anjos
Ou me livrar de meus demônios




VELHO NICK CALMO E BAIXO

Ficou um dia triste
Velho Nick calmo e baixo
Os olhares descontentes
Tão pesados quanto fracos
Em silêncio pertinente

Ficou um dia sério
Com um ar frio e severo
Velho Nick e fumo ao teto
E o coração, sem muito encanto
Parece indiferente e cego

Ficou um dia cinza
Ora chuva, ora garoa
E um sol sem esperança
De cansaço e pouca pressa
Precisando de descanso

Ficou um dia fúnebre
Repleto de silêncio e luto
Foi-se quem já estava longe
Foi-se, mas eu não me culpo
É recíproco não sentirmos muito




MADRUGADA FLUTUANTE

Hoje eu preciso de um conhaque
Para histórias que o tempo apaga
Eu preciso que alguém me ouça
Ou simplesmente me leve pra casa

Hoje eu preciso de luzes e cores 
Preciso de um balcão tranquilo 
Preciso de tranquilizantes
E longas trilhas de Leonard Cohen

Hoje eu preciso dos teus braços
Preciso mastigar tuas veias
Hoje eu preciso da tua calma
Em tempestades de areia

Hoje eu preciso dos teus lábios
Preciso de calor e colo
Hoje eu preciso dos teus olhos
Para as lágrimas de sempre

E tudo que tenho é outro conhaque
O sono embriagando corpos
Na madrugada flutuante
Que diz que não estamos mortos



NOITES MISERÁVEIS

Em frente à velha máquina
Tive noites miseráveis
Escrevendo a mesma música
Meus lamentos incansáveis

Mas restou um cheiro antigo
De jardins e inocência
De quimeras e incerteza
E de muitas despedidas

O balcão ficou calado
Em luto, sério e sóbrio
Sem porres que acordam mortos
Nem canções desesperadas






Corro sonhos e insônias
E já não deito à mesma cama





VELÓRIO E FLORES SEM DEFUNTO NEM SAUDADES

Velho demais para sonhar futuro
Cansado até para lembrar perfumes
Caixão sem flores nem saudades
Sem velório e sem defunto

Triste até se acabarem lágrimas
Indiferente a tudo e tudo é em vão
Quase um segundo é tudo que resta
Ocioso demais para lembranças

O que vier amanhã de manhã
Após o desespero e a insônia...
Suspiros de “não mais paixão alguma”
Ou ainda devo me entregar?

Festas fúnebres para dançar
Para frente e para trás
E doce fumaça para os olhos
Apenas isso e nada mais






Há um silêncio rompido de pranto
E essa mentira absurda
De dizer que estou sofrendo
Não é saudade ou arrependimento
Não é afeto nem respeito
É só o vazio preenchendo o peito





FEL E ESCOMBROS

Em dias como este eu observava a rua
Da janela de uma velha casa
Eu também chorava às vezes
E também, às vezes, eu ficava puto

Em dias como este, às vezes, eu me equilibrava
Por horas me dependurava à corda
Eu sonhava voar para sempre
Eu sonhava às vezes, mas não voava

Em dias como este eu poderia ter morrido
Mas a coragem não vencia o instinto
Então eu chorava às vezes. E chorava muito
Porque a felicidade não havia existido

Em dias como este eu acordava triste
Cheio de dúvidas e cicatrizes
Em dias como este eu bebia sempre
E só sabia que ninguém me entende

Em dias como este eu implorava um colo quente
Juntava tudo que havia partido, e me partindo
Procurava meus cacos em montes de lixo
E me alimentava do que estava ausente

Em dias como este eu implorei carinho
Algum conforto, algum ouvido
E fui me acostumando a ser sozinho
Para o amor eu sou um estranho

Paixões partiram a ferro e fogo
Tudo morre em meu entorno
Mil perdões é muito pouco
Para o mal que fiz aos outros

Em dias como este eu não tinha sonhos
E sempre perdia o que queria tanto
Às vezes eu não tinha sono
E às vezes dormia sobre fel e escombros



FAZ DE MIM LEMBRANÇA DOCE

Faz de mim lembrança doce
Pra que possa então sorrir
Ao sentir o meu perfume
Flutuando nas estantes

Nos meus sonhos mais secretos
Eu senti que esteve aqui
Com desejos controversos
Quis ficar e quis partir

Faz de mim luz e falange
Se o escuro lhe for grande
Sou irmão, mesmo distante
Que te cuida se pedir

Esqueça a sombra forte
Que caiu a nos ferir
Com rancor de
fel e ódio
Nos fazendo desistir

Apague do teu coração a fome
Do que é vil e não se come
Apague a fúria e apague as vozes
Que a mágoa há de dormir



ALEGRIAS QUE ME ESQUECEM 

Tive medo da tristeza
Essas coisas que machucam tanto
Sou assim quando me sinto falho
Qual criança se escondendo aos cantos

Pequenas coisas nos teus gestos 
Este amor que me reside
Esperança, em dias tristes
Em meus sonhos mais secretos

Sobrevivo a tantos trancos
Estou cansado desses versos
Que descrevem meus naufrágios
E meus dias mais desertos

Tanta coisa me entristece
Nessas noites de saudades
Em que choro minhas mágoas
E alegrias me esquecem





Explodiram uma bomba no trem
Você devia estar por lá
Mas já não é problema meu
Espero que esteja bem
Você vai me esquecer em breve
As mágoas ficarão dormentes
Os olhares diferentes
E as palavras bem mais leves





NENHUM CHEIRO DE ALVORADA

Desta vez não houve nada
Nenhum cheiro de alvorada
Pôr-do-sol sem muita calma
A esperança indo embora
Sem dizer uma palavra

Sem poemas. Tudo cala
A beleza se apagou
A impaciência fez morada
Nem luar e nem mais nada
O coração me abandonou 

Sem olhar de noite alta
Nenhuma lágrima brotou 
Não houve porre nem ressaca
Nem sequer instante bom 
O vazio me dominara

Naqueles tempos de desgraça
Ao menos eu me machucava
Jogava sangue na vidraça
Enquanto via a minha estrada
Com olhares de gigante

Mas agora já nem brasa
Só fuligem se agitando
Se perdendo pela casa
E infelizes sonhos brandos
Que não queimam mais na alma 



DESORDEIRO DO INFERNO

Ao som da máquina estridente
O musgo cresce nas paredes
E foi brotando lentamente
De uma fresta aparente
Um rubro galho reluzente

E dele enfim nasceu um fruto
Tão vermelho e tão pequeno
Que, sem motivo evidente
Triturei entre os meus dentes
E fui direto pro meu túmulo

Entrei num mundo diferente
Muito escuro e muito quente
E vi um homem demoníaco
Com grandes dentes pontiagudos
E longo rabo de serpente

Olhou-me e disse, contundente: 
- Eu aqui sou teu coveiro
- Mas prefiro ser-te amigo
- Pois também sou delinquente
- E vejo em ti um companheiro

Logo ouvi que foi crescendo
Um chiado insano-intenso
E explicou-me o desordeiro
Que era o êxtase ofegante
Dos vermes devorando os seres

E nada havia para vermos
Além de almas se afogando
Naquela foça borbulhante
Com cheiro de carne podre
E ausência total de anjos

Então corremos feito loucos
Pulamos como dementes
Em busca de vis banquetes
A fim de devorar os tolos
E as vísceras dos inocentes



CANSAÇO REPETIDO

Mil coisas vão rolando
Por isso ando sumido
No caminho escolhido
Desde quando eu era novo

O tempo foi passando
Oferecendo o vil e o tolo
O conforto inútil e insosso
Que me fez de fel e vício

Eu tentei aceitar o mundo
Mas não faço parte disso

Me estendo pelos anos
Faço coisas importantes
Sou intenso e sou feliz
Mas a vida vai mudando

Me perdi daquele encanto
Que movia velhos sonhos
E o que mais me completava
Hoje não me é o bastante

Resolvi mudar os planos
Não morrer de tédio e sono
Pois cansaço repetido
Mata um dia após o outro



UM BLUES PARA OS DROGADOS

Tudo que tenho (alguns trocados)
Dá pra algumas doses
E também alguns cigarros
Nesta noite regada de blues
De lágrimas e desabafos

Luzes e letreiros pra tudo que é lado
Sirenes de ambulâncias vão gritando ASSASSINATO!
A polícia foge
O rabecão tem fome
Bares fedem subsolos

Um brinde aos decadentes!
Um câncer para corações doentes!
Perdi você. Estou tão longe...
O trem avança à estação da mente
Num blues de lágrimas e gente

Onde está a emoção, baby?
Eu te amo tanto...
Quando você me vê, me diga:
Onde está a emoção, Baby?

Putas sob o viaduto (Elevado-Submundo)
Luzes para olhos turvos
Mendigos e morcegos sujos
Os trocados que tenho no bolso
Não pagam as carnes do mundo

Tudo que tenho (alguns trocados)
Não paga sequer um chute no saco
Uma punheta, um coração roubado
Hoje eu só vou escrever este blues
Um blues para todos os drogados

Só mais uma noite na cidade
Com putas, luzes e carros
Com tiros, sirenes e assaltos
Com choro, conhaque e cigarro...
Saudade que segue a meu lado

Esta é apenas outra noite triste
De tragos vagabundos e amargos
Beijos comprados com migalhas
Uma foto sua, uma navalha, um pulso cortado
E este é apenas um blues para todos os drogados





Último cigarro
Cemitério de pontas
Momentos importantes
E santos de barro
Voz que balança a alma
Mão que balança o berço





DESEJO



LIBERTINO

Hoje a tarde é cinza
E minha alma atormentada
Mil amores por toda a vida
E nada mais me agrada

Sexo em qualquer esquina
E me entrego por migalhas
De esperança e de carinho
E já não sinto a tua falta

Beijos que escorregam línguas
Ventres misturando insônias
Fluídos de amor perfeito
E lençóis cheios de prantos

O coração sempre partido
O corpo é meu prazer e vício
O gozo é meu melhor sentido
E não cobro nada por isso

Vagabundo e sensível
A todos os olhares doces
Que jamais serão amores
Porque amo o impossível

Sou encanto e sou sozinho
Sou o óbito futuro
Sou o breve suicídio
Sou... Sem resistência alguma



CÁLICES DE DOR E VINHO

Venho de outros tempos
De estranhos sentimentos
Dias de um chorar sereno
Por amores remoídos
E porres de tormento
Em cálices de dor e vinho

A carne em brasas e espinhos
O coração quase morrendo
O luto me vestindo
Me despindo de alentos
E prostitutas se servindo
Em grandes taças de veneno

Num jardim de flores podres
De terra amarga e improdutiva
Enterrei todas as dores
E as promessas não cumpridas
Nunca mais sentir perfumes
Que enganam a alma e a vida

A saudade esquecida
Na alcova escura e fria
Onde moram meus temores
Que vez ou outra ressuscitam
A face horrenda e hedionda
Da angústia que sentimos

Agora vivo outros ardores
A convivência dificílima
Mas a paixão conforta e instiga
O coração que desconfia
De todo afago que se intima
Por medo de sofrer de novo

Mas você, minha querida
Será minha eterna amiga
Companheira destemida
Nesta luta violentíssima
Que travo com meu mundo oculto
Muitas vezes te fazendo vítima



VELHO NICK NO PIANO

É uma boa hora pra rever os planos
Tirar a tarde pra limpar o aquário
Enquanto as frases que ressoam
Misturam-se ao longo sábado

Penso (em paz) em meus projetos
Calmamente penso; calmamente sonho...
Hoje à noite o teu silêncio
E canções chorando insônias

Perco-me em cochilos leves
O último instante calou seu pranto
De meu pobre coração ofereço
Esta jura de amor platônico

E eu sigo tristemente...
Corriqueiras luzes de meus porres
Noite por noite, dente por dente
No mundo todos estão mortos

No balcão deito minhas preces
Velho Nick no piano
A puta velha no outro canto...
Nem por todo desespero

É o mundo e sua miséria
Tanta falta de vergonha
É o demérito do encanto
É o amor jogado aos trancos

Era a mim que procuravas
Era eu, que mesmo longe...
"Não te assustes, pois te quero"
Ouviste, sim, mesmo distante

Não há mais nuvens de algodão
Só barulhos apressados
A vizinhança em algazarra
E um pôr-do-sol frio e cansado

Mas me resta um cemitério farto
Que cabe bem a estas horas
Que me leva e traz respostas
E que guarda meus instantes

Dorme, que meu coração não é de pedra
Dorme na calma de meu benquerer
Quando acordares terei ido embora
E saberás como é viver





Do amor sincero
Que para sempre arde
Resta a corda
Que precede o cobertor de mármore
Adeus, meu amor que nunca morre
Adeus, minha musa, minha saudade





DIABO (OU O CARALHO QUE FOSSE)

Tarde
Muito tarde
Enfim tristeza
E solidão

Cada vez mais frio
Mais escuridão
Alguém à porta
Ou alucinação

Bateu mais forte
E não tinha nada
Só o silêncio
Ao dar as costas

Diabo (ou o caralho que fosse)
Entrou na sala
Como sonho
Como álcool
Como vozes pela casa

E num toque áspero
Sem fé em nada
Senti todo o meu amor
Pelas damas da madrugada

Silêncio de novo
Depois...
Gatos no telhado
Trepando

A TV desligada
A porta aberta
Ventava

Restara um trago
Um fino
E a ressaca



MARIANA

A última sensação foi ódio
Não houve amor
Pois o chutei pra longe

Não relembrei momentos
Não senti saudades
Não quis carinho nem último beijo
Não quis dormir nem foder nas putas

Só o ódio foi companheiro
Nem a dor... Nem a dor me fez chorar
E quando todos já estavam longe
Não houve acaso nem descaso

Não relembrei momentos
Não senti saudades
Não quis carinho nem último beijo
Não quis dormir nem foder nas putas

E quando as vozes voltaram
Eu vi a chuva, eu vi os carros
E o silêncio foi maior
Do que tudo que eu já havia amado

Então não relembrei
Não senti saudades
Nem carinho nem último beijo
Não dormi nem fodi nas putas

Enfim o beijo virou cinzas
Com resquícios do perfume
Que deixou em minha boca
Minha doce Mariana



QUASE O CÚMULO DO AMARGO

Luz que dança alva e inerte
Fumaça amarelando o teto
Café fraco em boca seca
Falo rijo e mão dormente

Espasmos de um corpo imóvel
Câncer maligno do miocárdio
Mais ou menos quase calmo
Após o coito imaginário

Amor que é quase inadoçável
Quase o cúmulo do amargo
Outro trago para a mente
Em brisa leve e confortável

E meu vermicida homeopático
Cria ninhos de palitos de fósforo
Enquanto o último quase gole
Vem sem sonho, sem açúcar e gelado





Ébrios ensolarados
Tardes solitárias
Vidas de pouca pressa
Jacarés de boca aberta
Em busca de pôr-do-sol
Fetos de laboratório
Crepúsculo e formol
Resina e velório





O PERFUME DA TRISTEZA BRANCA

Mil erros são poucos ainda
Para somar minhas noites sem sono
Os meus vícios
Os meus amores
A cocaína
Você completa meus sonhos
Mas não quer sonhar comigo
Meu passado sem retorno
Meu presente sem futuro
Vinte e quatro horas sem descanso
Passo a vida a pedir socorro
Só você me dá abrigo
Mas não sinto algum conforto
O que há de errado comigo?
Deixa-me sonhar teus sonhos
Meu pesadelo é puro instinto
A vida já não faz sentido
E o sangue escorre em meu rosto
Não consigo dormir
A mentira é meu cotidiano
O dia é estranho
O sol, sem brilho
Tão sem brilho meus instantes
Socorro!
Salvem-me de mim mesmo!
Terça-feira d’algum outono
Memórias sem encanto
O dia mais feliz do mundo
Será o dia em que estarei morto
Será o fim deste abandono
Que criei para o infinito
Um universo escuro e estranho
Dias de qualquer outubro
O carinho jogado aos cantos
Como restos de carne podre
Meus olhos ainda sangram
Por mágoas de dias distantes
Lancei-me ao mundo sem muita sorte
Cometi os pecados da carne
Lancei-me em precipícios
Minhas verdades já não dizem muito
Porque ninguém acredita comigo
A solidão é um monstro
Algo que engole a vida
Algo que ausenta a alma
Sinto-me tão culpado agora
Que nem devo merecer as rosas
Decorando a minha cova
Não mereço as tuas lágrimas 
Não se culpe pelas minhas falhas
Meu coração nunca se acalma
Sou infeliz pra vida inteira
E não sei explicar a causa
Estandarte da revolta
Morrerei a qualquer hora
E acho que já nem me importa





Fujo do teu fantasma em minha casa
E do resquício do teu cheiro nas esquinas





BIANCA S.

Tão vazio
Sem momentos nem lembranças
De que vale tanta fama 
Se ninguém te espera em casa?
Não existe mais saudade 
Que floresça em poucas horas
De que vale?
Tão vazio...
Será que a verei ainda?
Será que o destino é que o gosto do seu beijo
De tão distante, apodreça?
Não suporto essa incerteza

Não há Bianca que me console
Não há Bianca que me entorpeça
Não há mais sexo em minhas veias
Nem saliva no meu copo

Bianca me espera
Nua, branca, em fragmentos
Bianca me espera
Eu a quero aqui dentro
Mas... Não mais
Não mais sexo em minhas veias
Nunca mais beberei seu cheiro



O BRANCO CHEIRO DA RUBRA MORTE

Pessoas como eu morrem de tragédias
Morrem de ausências e também de amores
Inconformadas com a vida e com o mundo
Pessoas como eu não recebem flores

Na eternidade de um semáforo 
Às três da tarde, num cruzamento calmo
Tento lembrar onde perdi meus sonhos
E quando me tornei tão falho

Tudo a meu lado sofre
Sofreu meu Céu, também meu Sol
Sorrisos largos se afogaram em lágrimas
E no branco cheiro de minha rubra morte

Eu fui feliz enquanto amei
Tentei ser justo a todo instante
Mas um silêncio incessante
Fez-se luto, fez-se inverno, fez-se adeus





Se vai janeiro
Se vão janeiros
O tempo passa
O tempo intenso
Passa rápido
E se esvai





NOITE ESCURA DA ALMA 

Conheci bandidos, ébrios e vagabundos
Conheci amigos que não valiam merda
E outros que valiam muito
Embora não tivessem merda alguma

Frequentei os piores lugares
Rastejei esgotos profundos
Fui companheiro dos desgraçados e dos infortúnios
Eu fui maldito em quase tudo

Conversei com os insetos
Vi alienígenas e astronaves
Vi também outros mistérios
Naveguei por muitos mares

Caminhei ruas sombrias
Bairros tristes e distantes
Caso grave à psiquiatria
Só a morte era importante





Hotéis vagabundos
Enchem quartos
Com corações aflitos
Em busca de aventuras
E migalhas de sorrisos





INERTE A TUDO

Assisto-me morto
Quanto vale a vida
Quando se vive para os outros?
Na mente náuseas
Da náusea ao vômito
Caído num banheiro sujo
Assisto-me inerte a tudo

Volto para casa
Escondo-me do mundo
Ninho de sanguessugas 
Sentimentos de porão escuro
Bebo sensações estranhas
Em enormes copos sem fundo
Telas que transmitem sonhos
Assisto-me inerte a tudo





O passado tornou-se um túmulo
Onde, vez ou outra
Deposito flores





LIBERTINO II

Me joga na cama esta noite
E me usa sem pedir promessas
Hoje eu te amo mais que tudo
E amanhã eu partirei com pressa

Talvez eu lembre teus sussurros
Talvez te lance algum suspiro
Talvez eu nunca mais te esqueça
Talvez teu nome fique oculto

Me joga na cama esta noite
Rodopios de néon e estrelas
Meus beijos e minhas tristezas
Teu corpo e suas frequências

Talvez eu lembre teu perfume
Talvez ele desapareça
Talvez eu nunca mais acorde
Talvez a corda me enlouqueça

Me joga na cama esta noite
No mar de tuas carnes lisas
Me esfrega as tuas partes íntimas
E me faz querer de novo

Talvez eu fique mais um pouco
Talvez eu volte n’outro dia
Talvez eu nunca mais te encontre
Talvez te busque em euforia

Me joga na cama esta noite
Sacia de gozo meus vícios
Contra todos os meus princípios
Sou puto, vadio e promíscuo



RUMINANDO VERSOS

Morro
Como tantos outros morrem
Em busca de volúpia e sorte

Romântico fora de moda
Fugindo do vazio da alma
Enfrentando a longa morte

Morro num fechar de asas
Perante a rotina insana
De quem perde as esperanças

O cotidiano enfim deserto
Enferruja e arranha os ossos
E segue ruminando versos





ESCÁRNIO



A MESMA FARDA

Atacam
Pela direita
Exércitos burocratas
Donos de tudo
Senhores de nada

Carregam
Nas mãos de mercúrio
O ouro e a praga
Armistício e fome
Sulfúrica chaga

Pertences de furto
Em grandes casas
De olhos de chumbo
E portas cerradas

Nação golpeada
Com adaga astuta
Colarinho branco
Terno e gravata

De forma bruta
À mão armada
Com arma fria
E a mesma farda



DOI-CODI

Nove e trinta
Um grito
Eletricidade e afogamento
E ameaças pavorosas
Aos que pensam livremente
Mas ninguém havia entrado
Para elucidar desterros
Preferiram moer gente

Dez e trinta
Um slogan
Dedos roxos e unhas verdes
Restos num saco preto
E nenhum túmulo aparente
Pois ninguém havia estado
Ali para marcar o enterro
Estavam controlando mentes

Onze e trinta
Uma música
O Hino dos Excludentes
Que deixou um mal sem preço
Mas ninguém havia tentado
Fingir que estava vendo
Estavam na antessala
Do hospício brasileiro



ELE NÃO!

Navalha na carne
Maldade na mão
Capitão de guarda
Tropa em prontidão

Nas ruas o ódio
O povo sem pão
O circo sem lona
A luta sem chão

Maldade na carne
Navalha na mão
Tropa de guarda
General Mourão

Soldados da pátria
De sangue e exceção
Androides sem alma
Terror da Nação

Tortura na carne
Bíblia na mão
Cachorros de guarda
O bom cidadão

A censura e a farsa
Falsa informação
Que no voto se faça
O poder da razão

Sem borracha na carne
Sem farda e canhão
Que a raiva se acalme
Ele Não! Ele Não!



SENTIMENTO DE REBOCO VELHO

Mesma casa
Móveis me encarando
Silêncio de velório
Sentimento de reboco velho
Tristeza de saudade
Cheiro de cemitério
História sem verdade
Ruas de duelo
Morte me encarando
Revirando a carne em versos
Qualquer passo sem futuro
Sorriso acinzentado e mudo
Mundo que se desintegra
Longo dia de silêncio e chumbo
Vida de inferno e raiva
Longa fila de defuntos
Genocídio e covas rasas





O silêncio me atordoa
Versos que ninguém escuta
Não há carros
Não há lua
Não há nada
Nem ninguém nas ruas





CARAVANA HISTÉRICA

Na violenta fé da caravana histérica
A pós-verdade é tão somente enfeite
Adorno chulo para a vida tétrica
Do ser terrível que corrói a mente

Enquanto o mastro solitário e triste
Suporta o peso da bandeira morta
A velha Era vem de arma em riste
E afronta a turba que sucumbe e chora



RETROCEDÊNCIA

Uma antiga Era que nos assombra
Tempos de generais
Valores chulos 
Que descartamos há muito 
Se transformando em salvação
O ódio venceu porque habita muitos lares e enfraquece corações
Ninguém será poupado dessa miséria 
Que ultrapassa a matéria e corrói o espírito
O ódio será cravado nas almas em forma de terror
E o terror, sob as várias facetas que lhe nomeiam
Será pesadelo em todos nós



FEL QUE DESCE O RALO

Anos vão passando
Desde o último confronto
Que arrancou a vida o e couro
E lançou-me a muitos tombos

Fel que vai descendo o ralo
Vai levando minha febre
E lavando a minha carne
Que um dia alimentou os vermes



SUJO E MANCHADO

Sigo perdido
No Tempo e no Espaço
Semblante sofrido
Visível cansaço
Olhar invisível
E puro embaraço
Café requentado
Em copo de vidro
Tão velho e fodido
Tão sujo e manchado
Parece comigo
Parece passado



METRÓPOLE

Minha cidade tem muitas igrejas
Pastores, senhores e velhas bandeiras
Igrejas intrujas sempre mais cheias
Vidas inócuas e muitas besteiras 

Minha cidade tem ódio a espreita
Asfalto, fuligem, sangue e truculência
Tem gente que ataca o sujeito que pensa
Tem gente que vive de pura aparência

Minha cidade tem almas desertas
Tem gente sem casa, tem gente sem terra
Tem muitas doenças e muitas sequelas
Pra onde se olhe a esperança se encerra

Minha cidade tem guardas e reis
Amores atônitos cheios de guerra
Mil pecadores na missa das seis
Cheiro de azedo, de sonho que erra

Minha cidade tem cheiro de mijo
De merda, de fome, de febre, de lixo
Minha cidade é esconderijo
De pragas, de crenças, de shoppings e vícios

Minha cidade tem muita notícia
Tem muito drible e pouca ginga
Tem governante integrando milícia
Tem muito Batman e muito Coringa

Minha cidade tropeça no incerto
O mito dos tolos está na vanguarda
O diabo transforma tudo em deserto
E ficamos sem preces nem anjo da guarda



DESOLAÇÃO

Cinco segundos de carinho
De cotidiano enfurecido 
Cerveja em copo sem fundo
Conhaque em caixão de zinco
Feito merda no ventilador
Ainda luto
Por dias melhores
Calmaria e morte
Meretriz e covardia
De mim não restou muito
Placa de volto logo
Vidro empoeirado
E o porre de cada dia



CAIXÃO DE ZINCO

Caixão de zinco
Serpente prata
Mão de alumínio
Sardinha em lata

Brado engolido
Clamor que estraga
Num mar de gado
De burro e carga

A verdade é canto
Proibido e fundo
Suprimido e morto
Encolhido e mudo



MESSIAS DEMONÍACO

Atacam-nos com fúria insana
(Intolerância conservadora)
Lançam-nos à margem
Na esperança inquisidora
De que obedeçamos à risca
Toda a pura ignorância
Da família tradicional fascista
E suas igrejas milicianas

Erguem o Alfarrábio Santo
Repleto de embuste e sangue
Apontam-nos como pecadores
Neste instante de maldade
Em que o insano é a realidade
E a fogueira dos pastores arde
Em busca de opositores

Deus abençoou a pólvora
E escolheu o senhor da morte
Como seu representante

Ao entortar linhas notórias
O caminho traçado da bala
Não atinge a carne nobre
Segue a velha trajetória
Contra o preto, o índio, o pobre

Messias demoníaco
Com seus cães conspiradores
Com seus traumas freudianos
E matilhas de censores
Defendendo a terra plana
E o ódio aos amores
Nessa nova guerra santa
Que transforma Cristo em arma
Os juízes em farsantes
E a Justiça em mera trama



CAPITÃO MACABRO NA TERRA DO DIABO

Capitão Macabro contra a quarentena
A ignorância é a pior doença
Pústula das ruas vindo a nós
Vírus e vermes ditam a sentença
De que por eles morreremos sós

Louvor de gado pelo abate
Pelo pasto cada vez mais pobre
Vivemos tempos venenosos
Sem nada mais de belo e nobre
Os cães do estado são raivosos

Um novo Nero sonha em Roma
Pesadelo que incendeia a todos
Um Ser nefasto que acende a tocha
O povo atônico induzido ao coma
E corações se transformando em rocha

Sinistro ar de arquivo morto
Sem espaço para tantas covas
Bravatas pisam o país faminto
Num alarido de caráter torto
Que faz daqui um labirinto

E quem viver para contar a história
Verá a latrina que enfim transborda
O velho caldo de sepulcro e bosta
Verá o gigante que jamais acorda
Pois esse é o jeito que o diabo gosta



REBANHO DE LOUCOS

Assusta-me imensuravelmente mais
A ignorância e o ódio daqueles
Que como selvagens animais
Desmedem seus dizeres
Imundam-se tais quais
Os mais infelizes seres
Que rastejam nos umbrais
Como cães defendendo alqueires
De escravocratas ancestrais
E na oficina do diabo
Nascem bolhas de holocausto
Junto ao limo dos narcisos
E dos egos consternados
De tantos ressentidos
Loucos desalmados
E sábios de improviso
Esse é o mundo paralelo
Onde todo o amor é extinto
E o horror verde e amarelo
Lança tudo ao precipício



POEIRA E QUARENTENA

Da vitrine empoeirada de minha triste quarentena
Admiro minhas lembranças satisfeitas e importantes
Solitárias e vagantes qual fantasmas em silêncio
Nesta rua conhecida desde tempos tão distantes

São lembranças encantadas do que há muito adormecera
Nos olhares sedutores que a paixão reconhecera
Com saudade antecipada do desejo que morrera
Junto ao brilho e a luz dourada que o vazio escurecera

E o aguardo de um abraço ficou velho, em vão, grisalho
Tão sem pele e amor sagrado; nenhum colo confortável
Tão puído e tão surrado; esquecido e maltratado
Empobrecido e inconformado, em lira insana e insuportável



NEM LUTO NEM MEMÓRIAS

Não tenho a prepotência da verdade
Não me compram as religiões fatídicas
Se sorrio ou choro isso nada importa
Quando enfim chegar a minha hora

Quando o óleo da engrenagem seca
A vida cessa e ninguém chora
Tanto quanto a própria alma
Arrependida do agora

Não tenhas a prepotência da verdade
Não te vendas às religiões fatídicas
Se sorris ou choras isso nada importa
Quando enfim chegar a tua hora

A carne estraga
A madeira estraga
As flores morrem
E o perfume acaba

Profanarão teu túmulo sem nenhum remorso
E sem remorso demolirão tua casa
Nem teu nome restará na placa
Roubarão o bronze e até tuas calças

Pois o mato cresce e o mundo esquece
A terra enterra e o sol se apaga
Nenhuma visita te trará uma prece
Nem suspiro leve de lembrança vaga

Não tenhas a prepotência da homenagem
Ninguém saberá teu nome nem tuas datas
Não se lembrarão de ti ao redor da mesa
Em que a tua infância fora amada

Teus pais terão morrido
Também teus filhos e as histórias
Terá teu tempo se esvaído
Não terás luto nem memórias

Não tenho a prepotência da verdade
Não me compram as sanhas políticas
Se reclamo ou clamo isso nada importa
Quando pesarem séculos sobre a minha cova

A seiva dos sonhos terá secado
Todos os sonhos serão esquecidos
E nossos ossos deitarão no ossário
Sem vestígios dos dias vividos



ESTATÍSTICAS

Sem vela, velório e pompas
Despede-se a alma escura
Na esquife dos excluídos
Só, ante a sepultura

Sem fé vai seguindo à míngua
E esvai-se em tanta amargura
Despacho sanitarista
Em dias de horror e fúria

Sem vela nem sino e pompas
Segue em burocracia astuta
Enquanto o caixão trepida
Na maca enferrujada e bruta

E segue lacrado e lúgubre
À vala coletiva e surda
Enquanto a escavadeira ruge
Qual monstro que semeia tumbas

Enfim silêncio e obituário
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Poeira de genocídio
Macabras questões políticas


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