sábado, julho 24, 2010

Um pouco de terror, vampirismo e volúpia.



Estou retomando o antigo hábito de ler histórias de terror, mergulhando no universo sombrio e aterrorizante de Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft, Stephen King e Clive Barker, por exemplo.

Separei para este post um trecho do livro "Dança Macabra" - O fenômeno do horror no cinema, na literatura e na televisão dissecado pelo mestre do gênero, Stephen King.

Em seu estudo, no capítulo 3, apresenta as três figuras clássicas do horror, que foram exploradas até a última gota, e alimentam até os dias de hoje o universo das histórias de terror: Frankenstein de Mary Shelley, Drácula de Bram Stoker e Dr. Jekyll, de "O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde", de Robert Louis Stevenson. No trecho a seguir um pouco sobre o assunto, com foco no mito do vampiro, e profunda ênfase no romance de Bram Stoker.

Vamos então ao que diz o mestre:



Todas as histórias de horror podem ser divididas em dois grupos: aquelas em que o horror resulta de um ato de vontade própria e consciente - uma decisão consciente de fazer o mal - e aquelas nas quais o horror é predestinado, vindo de fora, como o estrondo de um trovão. A história de horror mais clássica dentro desse último estilo é a história de Jó, do Antigo Testamento, que se torna um árbitro humano numa espécie de final de Copa do Mundo entre Deus e o demônio.

As histórias de horror de fundo psicológico - aquelas que exploram os caminhos do coração humano - quase sempre remexem no conceito de vontade própria; "mal interior", se assim desejarem, aquele a que não se tem o direito de responsabilizar Deus-Pai. Um exemplo é victor Frankenstein criando um organismo vivo a partir de partes humanas soltas, para satisfazer sua própria arrogância, para então cometer o pecado de recusar-se a assumir a responsabilidade pelo que fizera. Outro exemplo é Dr. Henry Jekyll, que cria Mr. Hyde, fruto essencialmente da hipocrisia vitoriana - ele quer ser capaz de farrear sem que ninguém, nem emsmo a prostituta mais barata, saiba que ele não é outro senão o santo Dr. Jekyll, cujos pés estão "sempre galgando o caminho da retidão". Talvez a melhor história de mal interior já escrita seja "O coração delator" de Poe, em que o assassino é cometido por maldade pura, sem quaisquer circunstâncias atenuantes para dourar a pílula. Poe sugere que nós chamaríamos seu narrador de louco porque precisamos sempre acreditar que tal maldade perfeita, sem justificativa, é uma loucura, para o bem da nossa própria sanidade.
 Romances e contos de horror que lidam com o "mal exterior" são, frequentemente, mais difíceis de serem levados a sério; tendem a ser não mais que histórias de aventuras juvenis disfarçadas, em que no final os sórdidos invasores do espaço são expulsos ou que, na última hora, o Belo e Jovem Cientista surge com a bugiganga que vai solucionar o problema... como quando em Beginning of the End, Peter Graves cria a arma sônica que lança todos os gafanhotos gigantes no lago Michigan.


Mas, ainda assim, o conceito de mal exterior é mais amplo, mais pavoroso, Lovecraft compreendeu isso, e é o que faz suas histórias de maldade suprema, ciclopiana funcionarem tão bem, quando são boas. Muitas não são, mas, quando Lovecraft foi feliz - como em "O horror de Dunwich" e "The Rats in the Walls" e, a melhor de todas, "Sussuros nas trevas" -, suas histórias encontraram uma incrível repercussão. A melhor delas nos leva a sentir a enormidade do universo no qual vivemos, e sugere a existência de forças sombrias que poderiam nos destruir a todos com um simples ronco durante o sono. Afinal de contas, o que é o ridículo medo interior da Bomba H, quando comparado ao Nyarlathotep, o Caos Rastejante ou a Yog-Sothoth, o Bode com Mil Filhotes?


O Drácula, de Bram Stoker, parece-me um empreendimento notável na medida em que humaniza o conceito de mal exterior; nós o captamos de uma maneira familiar, o que Lovecraft nunca nos permitiu, e podemos sentir sua textura. É uma história de aventura, mas nunca cai ao nível de Edgar Rice Burroughs ou Varney, o vampiro.


O efeito alcançado por Stoker deve-se, emgrande escala, ao fato de ter mantido o mal de fora da sua longa história, na maior parte do tempo. O Conde ocupa a cena quase o tempo todo durante os quatro primeiros capítulos, em duelo com Jonathan Harker, colocando-o lentamente contra a parede ("Haverá, mais tarde, beijinhos para todas vocês", Harker ouve o conde dizer à três estranhas irmãs, enquanto ele [Harker] cai semiconsciente)... e depois desaparece pela maior parte das, mais ou menos, 300 páginas restantes. Esse é um dos truques mais notáveis e sedutores da literatura inglesa, uma trompe l'oeil, que em raras ocasiões foi igualada. Stoker cria seu monstro imortal, ameaçador, da mesma forma que uma criança cria a sombra de um coelho na parede pelo simples menear de seus dedos em frente à luz.


A maldade do conde parece totalmente predestinada; o fato de ele vir a Londres com seus "abundantes milhões" não procede de nenhum ato de maldade de um mortal; a penitência de Harker no Castelo de Drácula não é resultado de nenhum pecado ou fraqueza íntima; ele aparece na soleira da porta do conde porque seu mestre assim lhe ordenou. Semelhantemente, a morte de Lucy Westenra não é uma morte merecida. Seu encontro com Drácula no cemitério de Whitby é tão moralizante quanto ser atingido por um raio durante uma partida de golfe. Não há nada em sua vida que justifique o fim a que ela chega, nas mãos de Van Helsing e de seu noivo, Arthur Holmwood - seu coração atravessado por uma estaca, sua cabeça decepada, sua boca cheia de alho.


Não que Stoker ignorasse a idéia do mal interior ou o conceito bíblico de vontade própria; em Drácula, tal conceito é personificado pelo mais sedutor dos maníacos, o senhor Renfield, que também simboliza a raiz do vampirismo - o canibalismo. Renfield, que está trilhando sua ascensão às altas esferas pelo caminho mais duro (começa comendo moscas; progride para aranhas, para, então, jantar passarinhos), convida o conde para ir ao hospício de Seward, tendo perfeita consciência do que estava fazendo - mas sugerir que ele é um personagem importante o suficiente para assumir a responsabilidade por todos os terrores que sucedem é sugerir o absurdo. Seu caráter, ainda que sedutor, não é forte o bastante para sustentar tal peso; partimos do princípio de que, se Drácula não tivesse usado Renfield, ele iria achar outro jeito.


De certo modo, foi mais a época em que Stoker escreveu que ditou que a maldade do Conde deveria vir de fora, porque muito dessa maldade personificada pelo conde tem sua origem numa perversão sexual. Stoker revitalizou a lenda do vampiro principalmente porque escreveu um romance que realmente palpita de sensualidade. O Conde jamais ataca Jonathan Harker; na verdade, ele está prometido às estranhas irmãs que vivem com ele no castelo. A impressão de Harker sobre esses ataques voluptuosos, embora letais, é de cunho sexual, e é apresentada em seu diário numa descrição bastante explícita, para a Inglaterra de virada do século.


"De joelhos, a jovem se inclinou sobre mim de forma lasciva. Havia uma voluptuosidade deliberada que era ao mesmo tempo excitante e repulsiva, e ao curvar o pescoço ela chegou a lamber os beiços, como um animal. À luz da lua, eu podia ver os lábios úmidos e vermelhos brilhando, assim como a língua escarlate, que se projetava por entre os dentes brancos e afiados. Ela baixava cada vez mais a cabeça, e os lábios afastavam-se de minha boca e quixo, parecendo prestes a se colar sobre minha garganta. Então ela se deteve. Eu podia puvir o ruído de sua língua enquanto ela lambia os dentes e os lábios, e sentir o hálito quente em meu pescoço (...) Eu podia sentir o tato macio dos lábios na pele ultra-sensível do meu pescoço, e a dureza de dois dentes afiados que não faziam mais do que tocá-lo. Fechei os olhos num êxtase lânguido e esperei - esperei, com o coração aos pulos."


Para a Inglaterra de 1897, uma moça que ficasse "de joelhos" não seria o tipo de moça que você levaria para conhecer a sua mãe. Harker está a ponto de ser oralmente violado e não se incomoda nem um pouco com isso. E não tem problema, porque a culpa não foi dele. Em matéria de sexo, uma sociedade altamente moralista pode encontrar uma válvula de escape psicológica no conceito de mal exterior: esta coisa é maior que nós dois, meu bem. Harker fica ligeiramente desapontado quando o Conde entra e interrompe esse pequeno tête-à-tête. Provavelmente, a maioria dos excitados leitores de Stoker, também.


Semelhantemente, o conde só ataca mulheres: primeiro Lucy, depois, Mina. As reações de Lucy à mordida do conde são muito parecidas com as sensações de jonathan com as estranhas irmãs. Para ser perfeitamente vulgar, Stoker está dizendo, num estilo cheio de classe, que Lucy está gozando como uma louca. De dia, uma Lucy cada vez mais pálida, porém perfeitamente apolínea, conduz um namoro decoroso e dentro dos padrões com aquele a quem está prometida, Arthur Holmwood. À noite, ela se embriaga num abandono dionisíaco do seu sedutor sombrio e sanguinário.


Na mesma época, na vida real, a Inglaterra estava experimentando o modismo do mesmerismo. Franz Mesmer, o pai do que nós hoje chamamos de hipnotismo, fazia apresentações de façanha. Como o conde, Mesmer tinha preferência por jovens donzelas, e as conduzia ao transe apalpando seus corpos... inteiros. Muitas experimentaram "sentimentos maravilhosos que pareciam culminar numa explosão de prazer". Muito me parece que essas "culminantes explosões de prazer" eram de fato orgasmos - mas pouquíssimas mulheres solteiras da época reconheceriam um orgasmo se topassem de cara com ele, e o efeito era visto simplesmente como um dos mais prazerosos efeitos colaterais de um processo científico. Muitas dessas moças voltavam a Mesmer implorando para serem mesmerizadas novamente. "The men don´t like it but the little girls understand", como diz a velha música de rhythm and blues. De qualquer modo, a questão levantada com relação ao vampirismo se aplica também ao mesmerismo: a "culminante explosão de prazer" foi bem aceita porque vinha de fora; ela, ainda que experimentando o prazer, não podia ser responsabilizada.


Esses fortes semitons sexuais são certamente uma das razões pelas quais o cinema manteve um caso amoroso tão longo com o vampirismo, começando por Max Schreck em Nosferatu, seguindo através da interpretação de Lugosi (1931), a de Christopher Lee, até Os vampiros de Salem (1979), onde a interpretação de Reggie Nalder fecha o círculo com Max Schreck novamente.


No fim das contas, é uma chance de mostrar mulheres em sumários trajes de dormir e rapazes dando os piores amassos que você já viu nas garotas adormecidas, e de encenar, repetidas vezes, uma situação da qual os cinéfilos parecem nunca se cansar: a cena do estupro.


Mas, talvez haja mais coisa por trás dessa sexualidade do que à primeira vista. Antes, eu mencionara minha crença pessoal de que muito do que nos atrai nas histórias de horror é que elas nos permitem exercitar aqueles sentimentos e emoções anti-sociais, que a sociedade nos exige manter escondidos na maior parte das ciscunstâncias, para o bem da sociedade e para o nosso prórpio. De qualquer maneira, Drácula certamente não é um livro sobre o sexo "normal"; não tem nenhum Papai-e-Mamãe rolando aqui. O Conde Drácula (bem como as estranhas irmãs) estão aparentemente mortos da cintura para baixo; eles só fazem amor com a boca. A base sexual de Drácula é um oralismo infantil juntamente com um forte interesse em necrofilia (e pedofilia, diriam alguns, considerando Lucy no seu papel de dama vaporosa). É também sexo sem compromisso e, no singular e divertido termo inventado por Erica Jong, o sexo em Drácula pode ser visto como a derradeira "trepada sem zíper". Essa atitude infantil, reprimida, com relação ao sexo, pode ser uma das razões pelas quais o mito do vampiro - que nas mãos de Stoker parece dizer: "Eu vou estuprá-la com a boca e você vai adorar; ao invés de contribuir com o potente fluido para o seu corpo, eu vou sugá-lo" - tem sido tão popular entre os adolescentes, ainda tentando se entender com a própria sexualidade. O vampiro parece ter encontrado o atalho entre todas as máximas culturais a respeito do sexo... e, para completar, ainda é imortal.


Logo volto com mais trechos aterrorizantes de clássicos do sobrenatural, e alguns pequenos contos de minha autoria.

Até breve.


Na LUTA!
Adriano Pacianotto

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