sexta-feira, julho 19, 2013

"A Uma Caveira"



Na minha mesa de trabalho, um dia,
Para satisfazer-me a fantasia,
Resolvi colocar (faz hoje um ano)
Um velho crânio humano.

Não sei de que jazigo
Teria vindo aquele crânio antigo,
Aquele crânio desarticulado,
Rompido, rôto, em ruínas, arruinado.

Mas habituei-me a ver a noite inteira
Nessa estranha e enigmática caveira
A expressão de uma angústia muda, quieta,
Silenciosa, secreta.

E no meu quarto nós
Passamos o ano todo, eu e ela, a sós,
Pálidos, desgraçados, corrompidos,
Tôrvos, fatais, amargamente unidos.

Na mesma mesa trágica de estudos
Fomos, os dois, dois confidentes mudos.
E assim surgiu, como num descalabro,
Um romance macabro.

Eu ia descobrindo,
Como se houvera um Sézamo se abrindo,
Certa graça sutil, talvez quimérica,
Naquela geometria cadavérica.

E, no esgar da amaríssima ironia,
Ela, às vezes, a mim me parecia
Que, em vez de feita de ossos, fosse, entanto,
Toda feita de pranto.

Acabei percebendo
Que aquele crânio misteriosos e horrendo
Tinha uma vida quase imperceptível,
Solitária, tristíssima, terrível.

Mas ficou lá por todo um ano, todo,
Aquela ossada que emergiu do lodo,
Com as mandíbulas meio desconformes
E as órbitas enormes.

Tristes restos de vida
Já aos pedaços, já podre, apodrecida,
Que todavia, embora podre e parda,
Foi-me constante como um cão-de-guarda.

Essa caveira suave, quase doce,
Deixou-se ali ficar, como se fosse,
Como se fosse, aquela atroz caveira,
A amiga derradeira.

E hoje nós dois, amantes
Aterradoramente semelhantes,
Traduzimos em beijos subjetivos
Nosso desprezo pelos seres vivos.

Do livro "O Príncipe das Trevas" - Roberto Lessa - Edição Saraiva - São Paulo - 1966

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